
Nossa acrópole é a igreja da Penha.
Nossa lógica é transparaconsistente.
Promovemos transpaideias da excepcionalidade para jornadas ontofílicas.
Produzir sentido nos esgota.
Dadaísmo, cinismo, epicurismo, antropofagia e macumba.
Nem incluídos, nem excluídos. Ali esticados, entre o animal e o divino, os seres humanos. E dentre os animais, os mais próximos – não por parentesco, mas por afinidade: os cães. Há dentre a gente quem lhes vasculhe os olhos a procura de alguma alma. Há quem jure que no fundo deles há mesmo uma. Alma canina. Não é da casa, nem da rua. É bicho domesticado, feito a razão. Não, é gente, mas também não é bicho-bicho. Leal, não trai a confiança do dono. Mas como é bicho, segue o instinto. Ladra e morde, conforme a lua. Deve ter nostalgia das matilhas. Feito a gente talvez tenha da caça e da coleta, do Éden. Nem incluídos, nem excluídos. Humanizados, mas ainda irracionais. Fesceninos, mas ciosos do pecado original.
O olhar racional é excludente, seletivo. O olhar é totalitário e cheio de bordas, faz escolhas, discrimina, hierarquiza, obedece a uma constelação interna de valores e princípios introjetados pela cultura. O olhar é um regime de exceção. Não há nada no mundo menos reto que a retina. O olhar só reconhece aquilo que entra e que depois volta. Indiferentes são os eleitos à negação do olhar. É a escolha negativa, a anti-escolha - também escolhida. O indiferente é o indistinto. O igual entre si, o negligenciado, o não mirado. A margem do civilizado, do civilizador, da civilização. A conseqüência, a sobra do processo, o troco da escolha. Assim são os cães da rua. Nem incluídos, nem excluídos.
O Filósofo franco-lituano de origem judaica, Emanuel Levinas, capturado pelos alemães em 1940, relata que durante sua estada no campo de concentração, pôde perceber que, aos olhos dos guardas e dos eventuais visitantes, era certo que tanto ele quanto seus companheiros já não mais pertenciam à raça humana. Foi a aproximação de um vira-latas que lhes devolveu a certeza de suas humanidades. O olhar do cachorro fora o espelho do olhar do outro, o amparo da alteridade essencial para evitar sua ruína psíquica.
O cão também é o diabo. Enquanto o cachorro de casa é o melhor amigo do homem, o cachorro da rua é o bicho ladino. Invectivo, anódino, desterrado. A cachorra é a bandida, a ingrata, a promíscua. Muitos significados pra um só bicho. Preço da proximidade com o homem, que é muitos também. Nem incluídos, nem excluídos. Para os cães e para os jovens, no limiar do concreto, só um tempo e lugar no mundo: aqui e agora. “Não há futuro para você. Não há futuro para o homem civilizado” – bradavam os Punks. Nem incluídos, nem excluídos. Cães de rua. Vira-latas. Livres porque assim nascidos, cativos porque domesticados, humanizados. Reconduzidos ao sonho da regressão à animalidade perdida, a nostalgia da matilha, a nostalgia do Éden.
O cínico (do grego Kynos - cão) é um cão andarilho, que precisa da liberdade, porque é na liberdade que constitui sua autenticidade. Só o homem livre governa a si mesmo. Uma vez bastando a si próprio, porque desprendido das amarras condicionantes do jogo social, conjuga o binômio da anaideia (postura de irreverência extravagente e insolente) com a parrésia (dicurso radical, livre de boicotes estratégicos e restrições socialmente convenientes). A verdade na sua versão mais cortante, praticada daqueles que são tidos como inferiorizados na escala social, para aqueles em condição teoricamente superior, conforme essa quadratura. A atitude cínica depende intrinsecamente da consonância entre discurso (parrésia) e ação (anaideia), tendo a liberdade como condição irrevogável para seu exercício. A Parrésia é o soro corrosivo que torna evidente ao interlocutor (que fala de uma posição de poder) a perda do limiar tênue que separa a hipocrisia como preço do convívio social, do ethos escravizante que deforma a personalidade e desconecta o indivíduo do mundo da vida.
A vida gera filhos demais e não cuida de todos. A maioria não buscou a exclusão como condição de estar voluntariamente à margem, mas foi a exclusão circunstância de um processo perverso. A vida é cachorra: promíscua e ingrata. Mas são também os cães, bons guardadores de rebanho que invariavelmente nos apontam nossa humanidade, quando às vezes não nos sentimos suficientemente convencidos dela e para que dela não nos percamos definitivamente - fado que parece inerente à indeclinável condição narcísica do homem.
Não é o humano que determina o humano. Nem o natural. Nem o divino. O que determina o humano é a impossibilidade de encontrar o fundamento último do bem e do mal. E por isso podemos optar pela não crueldade - porque somos fracassados em definir o que "somos" por fim. Mas mesmo o cruel é humano, porque o bem e o mal não se apresentam pra nossa consciência de forma clara e distinta. E saber suportar ou não esse peso é o que nos diferencia do restante de todas as coisas que existem. Um animal não é bom ou mau por essência. Ele é animal. Não leva consigo a maldição de carregar o peso de ser um ser moral. Humanizamos bichos e deuses porque a humanidade em nós é insuportável. Colocamos neles a pureza impossível que desejamos em nós. E desumanizamos uns aos outros porque a gente não suporta a maldição de ser gente.
Quando alguém declara que alguns humanos merecem sofrer em lugar de animais, entendemos que a recusa radical ao direito de impor dor via suplício físico a nenhum ser nunca foi o sentido último da sua ética. O que emerge desse discurso é que a moral desse indíviduo é tão somente governada pelo fato de que sua humanidade é um fardo terrível demais (porque somos seres impossíveis) pra que ele ouse conduzir sua racionalidade e sua compaixão no limite de suas potências. Então os bichos, na singeleza de sua bestialidade, viram depositários da nossa humanidade impossível, e nós, castigados porque nossa razão fracassou em fazer de nós mesmos, deuses.
Ironicamente, chamamos de "monstros", "bichos", "animais" esses semelhantes que supostamente traem a fragilíssima humanidade que imaginamos existir em nós.
Quando emerge o homem, negamos o animal. Quando emerge o animal, negamos o homem.
O homem é o animal que nunca está. E só existe porque é um ser que se nega. E por negar-se, torna-se potencialmente cruel.
Nós não somos como os animais. O animal habita a graça. O ser humano é um animal des-graçado. Animais morrem e matam sem culpa. O ser humano sente culpa ao abotoar uma blusa. Um animal quando mata ele é a própria natureza em ato. Um ser humano ao matar o mais microscópico dos seres já modifica a natureza. Um ser humano dormindo modifica a natureza. A maldição do ser humano é não poder ser sem sair do mundo da vida. E sair do mundo da vida é viver na culpa. Não há crime perdoável para o humano posto que sua existência já é fundada em transgressão. Vivemos e morremos para nos havermos com o pecado. E fracassamos, não importa o desfecho. Seja qual for o ato, nosso maior castigo é saber que, não importa o que fizermos, tudo é perdoável em alguma dimensão concreta ou simbólica- porque somos, em essência, os legisladores e juízes de nossa própria história no mundo e existimos no mundo da lei, tutelados pela culpa.
Então os bichos, na singeleza de sua bestialidade, viram depositários da nossa humanidade impossível, e nós, castigados porque nossa razão fracassou em fazer de nós mesmos, deuses.
Ironicamente, chamamos de "monstros", "bichos", "animais" esses semelhantes que supostamente traem a fragilíssima humanidade que imaginamos existir em nós.
Quando emerge o homem, negamos o animal. Quando emerge o animal, negamos o homem.
O homem é o animal que nunca está. E só existe porque é um ser que se nega. E por negar-se, torna-se potencialmente cruel.
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